quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Cem Passos


Para Shion Sono, pelo seu Jisatsu Circle (sem o qual esse conto descarado talvez não existisse).

A mãe limpava o catarro pastoso da criança. O homem de terno folheava suas anotações tiradas de uma pasta de couro. A garota de cabelos vermelhos beijava a nuca da garota de galochas amarelas. A professora pensava nas provas que teria que corrigir ao chegar em casa. O marido se perguntava se a esposa sentiria o perfume barato da prostituta. O gari tentava limpar os seus sapatos gastos com um pedaço de flanela imunda. A ninfomaníaca encarava o homem de terno como se quisesse lhe chupar os ossos. O açougueiro lamentava no semblante o prejuízo do seu empreendimento e o lucro do concorrente. A empregada doméstica pensava em seu salário miserável, insuficiente para quitar todas as dívidas no banco. O advogado pensava em qual anel escolheria para pedir a bela namorada em casamento. O irmão da bela namorada do advogado pensava em terminar seu caso com ele, já que começava a se apaixonar. A senhora solitária se lembrava de não ter colocado ração para os treze gatos. A aeromoça sorria distraidamente enquanto recordava a última transa que tivera com o namorado poeta. O gerente do pequeno supermercado segurava o choro ao lado da filha ninfomaníaca, constatando que a filha estava longe de ser a santa que ele desejava.
E foi então que chegaram, com o barulho estrondoso de cem passadas. Muitos dos que esperavam olharam de soslaio, para em seguida voltarem aos seus próprios pensamentos.
Eram cinquenta, cem passos, em dois segundos, todos igualmente uniformizados. Os garotos vestiam calças azuis, as garotas exibiam saias xadrez. Todos ostentavam o mesmo tipo de blazer, liso, em tom azul-marinho. Pareciam saídos de um anime - riam, contavam piadas, casos, besteiras, discutiam matérias das aulas, falavam dos professores, dos pais, das paixões, do filme do momento...
O saguão vibrou com suas vozes, a balbúrdia adolescente; os hormônios em ebulição.
O relógio marcou 12:15. O metrô estava chegando. Ao contrário dos ônibus e vans, o metrô jamais se atrasa.
As pessoas começaram a guardar os pensamentos. Deveriam guardá-los, entrar nos vagões, procurar lugares confortáveis, e só depois disso tentar retomá-los. Alguns se lembrariam exatamente de onde haviam parado, e retomariam. Outros esqueceriam e mudariam de pensamento como se muda um CD. Outros ainda iriam admirar a vida através das janelas, uma vida que parece outra, vista em movimento.
Aos poucos, os estudantes pararam com a algazarra. O saguão foi inundado pelo peso do silêncio. Agruparam-se lentamente diante da linha amarela, a linha com os dizeres: “CUIDADO! MANTENHA DISTÂNCIA!” As pessoas guardaram seus pensamentos por completo e acharam estranho aquele agrupamento repentino.
O metrô chegaria em alguns segundos.
Os estudantes alinharam-se frente à linha.
O metrô fez-se ouvir, distante. Eram cem pés, e uma linha amarela.
As pessoas mudaram suas feições. Trancaram seus pensamentos e sentiram um pavor repentino.
O metrô aproximava-se.
Os estudantes se deram as mãos formando longa corrente.
O metrô fez a curva, podia ser visto agora.
Os estudantes levantaram os braços em corrente e sorriram.
“UM!”, gritaram.
As pessoas levaram as mãos às bocas abertas.
“DOIS!”, gritaram.
As pessoas sentiram seus corações bem apertados no peito.
“TRÊS!”, gritaram.
Pularam juntos. A longa corrente. O metrô veio veloz e tudo o que as pessoas viram: sangue fresco, vermelho, vivo, brilhante, esguichado na linha amarela, nos vagões prateados, em suas roupas coloridas. Perderam seus pensamentos por completo em meio ao vermelho e parecia que estariam perdidos para sempre (mas você sabe o que dizem... para sempre é muito tempo, não?). Mal pensavam que no próximo dia estariam pegando o mesmo metrô, mesmo que em outras estações, sem linha vermelha, sem corações apertados.

Esqueceriam.

Esqueceriam.