quinta-feira, 4 de março de 2010

-=(( Abraço de Névoa ))=-


Escrevi esse conto assim que voltei da Praça do Papa, numa noite em que a serra às minhas costas se cobria de uma massa de névoa que naqueles instantes me pareceu palpável. E quebrei a minha promessa, a que eu tinha feito logo após o ponto final do meu primeiro e último conto vampiresco - lembro bem de ter me sentido tão diminuto diante da Anne Rice (Tia Arroz, para os íntimos), essa autora que me acompanha desde o início da adolescência e trouxe existencialismo vampírico a alguém que tinha Nosferatu como referência mitológica desses seres noturnos.
Dedico a ela essa minha promessa partida.
Aprendi (já há algum tempo) a aceitar minhas miudezas, encontrando nelas um brilho fosco que me é precioso.
Quisera eu encontrar o equilíbrio entre a prolixidade e a arte da concisão; talvez assim essas palavras delongadas não me soassem tão necessárias. Mas esse sou eu... e são essas as palavras que agora eu tenho a oferecer.
Que elas digam por si.

*

O mundo chorava, e eu escutava o seu choro. Escutava os gemidos com meus ouvidos aguçados, meus ouvidos preternaturais, e enxergava lágrimas pesadas com os meus olhos vampirescos. Para os mortais que de longe observavam, chovia. Para mim, no alto da montanha, o mundo chorava.
Voltei à reentrância cavernosa que há muito eu me acostumara a chamar de lar – uma pequena saliência rochosa que se desdobrava em direção ao coração da montanha, estreita e profunda o bastante para que eu me escondesse dos raios, quando estes brotavam junto ao sorriso ferino do sol de cada manhã.
Dormia ali durante o dia, envolto por uma capa de viagem que separei do armário de meu pai; esta mesma capa, agora já puída e desfiada, que ainda guardava o cheiro do seu antigo dono, embora eu soubesse, nem mesmo o meu olfato extraordinário seria capaz de detectar odores inexistentes no tempo; era apenas a lembrança traiçoeira a me enganar. Era apenas o toque frio e amargo da saudade de um tempo que já não volta.
Em todas aquelas centenas de anos, retornei uma única vez à fazenda onde fui criado. Senti meu peito se enchendo de fúria e dor ao ver com grande assombro o estalar de ondas do mar batendo violentamente contra o monte escarpado. A fazenda de meu pai havia sido levada pelos ventos do norte. Uma única árvore jazia ali, encarapitada no monte onde passei as melhores tardes da minha infância, observando as gaivotas que sobrevoavam o céu de azul luminescente. Aqueles dias estavam perdidos na grande ampulheta, constatei ao chegar onde a árvore majestosa balançava sombriamente. “Os que naquela época longínqua habitaram este lugar voltaram às pedras, e ao pó...”, eu disse para mim. A promessa de eternidade me assustava desde aquela época, como as serpentes assustam as crianças que brincam nos bosques. Meu corpo inumano poderia resistir a milênios. E minha alma, resistiria?
Abri meus olhos, repudiando com a mente o som lacrimoso dos gemidos do mundo – este choro que aos olhos mortais soava límpido como a chuva; e decidi sair do meu exílio. Vesti-me com vestimentas deste século que ainda não consigo compreender, mas não abri mão das cores mais escuras, estas cores clássicas que me acompanham desde o início de minha vida pós-morte. Aquecido em meu longo sobretudo negro, desci por entre as árvores e rochas, ágil como um felino que abraça a escuridão da noite com olhos de faróis acesos. Apertei o nó do meu cachecol, a fim de ocultar a alvura da minha pele, que brilharia como mármore sob a luz do luar, e abaixei a aba do meu chapéu panamá, a fim de manter meus olhos de topázio despercebidos dos transeuntes que ainda circulavam pela praça.
Pus-me a caminhar, embriagado com os risos dos amantes que se beijavam nos carros lustrosos e os sonhos dos amigos que compartilhavam no gramado uma garrafa de vinho barato. O cheiro ácido do vinho adentrava minhas narinas, e nele havia promessas de fuga, e entrelaçamento de desejos. Sobre uma manta esticada na grama úmida um garoto dedilhava uma pequena caixa decorada com grãos de café; e ao seu lado, uma garota de cabelos ruivos cantava uma canção. Senti o aroma dos grãos, que vinha junto a notas almiscaradas de perfume. Notei que ambos olhavam em direção à cidade lá embaixo – um borrão exuberante de luzes das mais variantes cores; uma tempestade inesgotável de brilho especular e metálico –, e em suas mentes eles desejavam alçar vôo, desejavam as asas de Ícaro, despreocupados com as consequências e inevitabilidade. Não habitava naquele par de almas o gosto salgado do futuro; havia apenas o desejo de possibilidades que surgia agora, nas palavras e no silêncio; no que estivesse às mãos.
Permiti que o vento brincasse com os meus cabelos sedosos, minha cabeleira ruiva que agora dançava junto às folhas ásperas dos pinheiros – senti-me humano, por alguns segundos, senti-me parte desta teia de matéria e mistério. Mas continuei minha caminhada, impressionado com a diversidade caótica de música que saía das caixas de som dos carros velozes, até avistar numa esquina o objeto do meu desejo frugal: uma prostituta, que não era mulher, tampouco homem. Um ser híbrido, era o que ele/ela talvez almejasse ser. Era nítido que havia sob a textura da sua saia curta um pênis, mas os seios fartos e ofegantes que saltavam (cheios de malícia) do decote semitransparente consolidavam a feminilidade daquela criatura suculenta. Seu coração batia acelerado, dilatando suas veias, atraindo minha sede. Há muito eu não me alimentava; havia me privado do prazer do sangue, este veneno que me toma em culpa e tragédia. Mas eu sabia, não conseguiria resistir. E estava consciente do fato: uma prostituta não despertaria suspeita. Poderia matá-la contra um muro, sob os olhares de todos os boêmios que passariam assobiando diante da cena igualmente e pitorescamente boêmia: apenas um homem satisfazendo-se com o sexo pago. Sorri para ela, beijei-lhe as mãos com meus lábios frios e macios – seu coração descompassado atraindo a cada batida a fera indestrutível que habita em mim. Convidei-a para um passeio em minha companhia, ela aceitou de prontidão – quem em sã consciência não aceitaria? Mas eu não a torturaria, não delongaria aquele desfecho. Por isso me joguei contra ela no primeiro cruzamento deserto que encontramos pelo caminho; seduzi-a com um beijo, molhando seus lábios carnudos com a minha língua de consistente lisura. Ela gemeu, e disse o seu preço. Eu cravei meus caninos em seu pescoço, cobrando o meu. O meu preço é sempre o mais alto, mas ela não poderia saber, ou tentaria inutilmente fugir como um animal acuado, transformando-me no monstro que eu sou. Senti a tez rompendo-se ao meu toque, o líquido rubro e quente adentrando a minha garganta. Eu bebi dela como um recém-nascido bebe da mãe, atado ao seu seio leitoso; bebi como um alcoólatra bebe a sua garrafa de uísque escondido dos que ama. E eu estava certo quando ouvi passos se aproximando de nós. Os boêmios assobiaram em deboche ou incentivo ao estranho que chupava o pescoço do homem travestido.
Deitei o corpo inerte às portas fechadas da loja de móveis, ela parecia sonhar um sonho bom; parecia até sorrir, mas não sorria. Este era apenas o meu desejo romântico, o desejo humano que a todo instante digladia-se com o monstro abjeto que consome a minha natureza morta. A vida dela percorria agora o meu corpo, aquecendo-o, avivando-o num formigamento que só consigo sentir plenamente nestes atos. Meu prazer já se misturava à culpa e, no entanto, não me impediu o prosseguir. Permiti que meus passos revigorados decidissem a rota, e eles me conduziram a um belo café, cujas paredes haviam sido tomadas pelos cachos bastos de buganvília que caíam em cascata. Puro charme...
Adentrei o lugar, deliciado com a luz bruxuleante das velas que decoravam as mesas circulares, e o jazz aconchegante que envolvia aquela atmosfera - Ray Charles me adoçicava os sentidos. Ali me senti pleno, ligeiramente distante deste princípio de século que pouco me diz. Estava mais uma vez nos guetos de Greenwich Village, em Manhattan, e no French Quarter, em New Orleans; estava de volta às minhas andanças por entre os vários continentes, em busca de significado e validação.
Sentei-me a uma das mesas, e pedi um expresso. O garçom mal repetira o meu pedido em voz alta, lembrei-me do rapaz que dedilhava sua caixa de grãos, e a garota ao lado que entoava sua canção. Perguntei-me onde estariam agora. Notei olhares curiosos em minha direção, desviei meus olhos. Talvez eu nunca me acostume com o fato de que sempre chamarei a atenção, pelos cachos acobreados que descem pelos meus ombros, pela palidez inigualável do meu rosto, ou pela imponência do conjunto. Nestas horas apenas desvio o meu rosto dos que me perscrutam, e espero que a minha indiferença desvie também o seu foco. O garçom voltou à mesa, colocando a xícara sobre o guardanapo colorido, sorrindo encabulado – até mesmo ele se sente atraído pela imagem que seus olhos vêem. Eu não bebo o café, apenas permito que o aroma desalinhe os meus sentidos; a dança das notas, do amargor à doçura, das partículas que se quebram no líquido escuro à fumaça dançante que acaricia o meu rosto. É apenas uma xícara de café, mas é sempre mais, este pequeno milagre que atinge toda a matéria, fundindo os elementos em suscetíveis micro-ações que só posso considerar mágicas, contrariando a racionalidade de que disponho.
Saí ao encontro dos cachos de buganvília no exterior do café. A chuva fraca que ainda caía quase não atingia as ruas, levada pelo curso impreciso do vento. Fechei novamente os olhos e voltei a escutar o choro do mundo. Sorri ao apalpar os cachos em cascata; lembrei-me dos escravos da fazenda, que podavam as buganvílias de minha mãe nos verões. Agora pó, todos eles, misturados – quem sabe? – às flores secas sob a terra. Viver para sempre não é uma boa promessa quando se tem sobre os ombros o peso inerente do passado.
Senti que o frio aumentava, enquanto eu refazia o caminho até minha morada. Já de volta à praça notei a neblina que se adensava nos picos das montanhas que me são tão queridas. Procurei pelo garoto da caixa, e a garota da canção. Não os vi. Percorri os gramados das mansões, fixadas aos pés das minhas montanhas, pulando por fim as grades de ferro retorcido que dificultavam o acesso ao meu território. Senti o cheiro de cannabis dispersando-se nas proximidades, e escutei a conversa dos três jovens que compartilhavam o cigarro aceso. Alimentaria-me deles, depois, numa outra noite, quando a fome voltasse a me ferir.
Com a velocidade de um leopardo corri por entre os obstáculos naturais, e em minutos estava de volta às alturas, sentindo a gelidez arrebatadora da cerração envolvendo meu corpo, penetrando em todos os vãos aparentemente invisíveis do meu sobretudo, encharcando-me de umidade. Tirei meu chapéu e abri meus braços, permitindo que a massa gelada me tocasse em cada ponto. Já não ouvia mais o choro do mundo, a névoa o havia desfeito trazendo o seu inverno particular. Eu me sentia suspenso, desprendido deste mundo, tal como a criança que contempla o vôo das gaivotas contra o céu azul, tal como os sonhadores que observam do alto da cidade a profusão de cores e sons, e por algum tempo abrem mão do futuro, quando o presente parece ser justamente... o presente.
Aceitei o abraço da névoa, e naquele abraço desejei a eternidade, a mesma que amaldiçôo, quando na escuridão do meu abrigo ouço o som das gaivotas que partem em direção às novas terras.