
Acordou com cócegas nos olhos. Alguém ou algo a lambia. O instinto de Calie a fez proteger o rosto, e num pulo se preparou para atacar o possível agressor, isto é, caso ele não fosse um homem-coelho mais forte que ela e tentasse estuprá-la uma segunda vez. Mas Calie não tinha com o que se preocupar. Era apenas um garotinho, com orelhas pontudas e cauda peluda. “O que é você? E por que estava me lambendo?”, perguntou desconfiada. O garotinho sorriu misteriosamente, e começou a lamber o próprio corpo, já que não podia mais lamber os olhos da ruiva adormecida. Calie percebeu algo estranho na textura do garoto-gato, algo que a fez se lembrar de lugares estreitos. “Por que tua pele é assim?” O menino-gato ignorou a pergunta e continuou a lamber preguiçosamente as próprias patas. “Tua pele me lembra papel crepom”, disse baixinho, como que para si. De fato, a textura era essa, de papel crepom que depois de amassado tivesse sido insistentemente esticado, até que as marcas profundas se transformassem em linhas finas e horizontais. Era uma imagem inquietante. O garoto terminou as patas e mudou as lambidelas em direção ao lombo. Calie se sentiu desconfortável observando aquela cena. Lembrou-se com um baque do que ocorrera antes do desmaio, do chá de cogumelos que havia tomado na companhia do chapeleiro. Sentia-se melhor agora que havia vomitado (a não ser que a pasta amarelada no chão não tivesse saído do seu estômago). Seria essa a lição que Calie tiraria desse seu pesadelo interminável? Um coelho pervertido, um pedaço de papel alucinógeno, um chapeleiro maluco e um chá vencido; seria esse o preço que alguém deveria pagar por se arriscar numa aventura que bate às portas? Calie não se sentia bem. Nunca havia desejado tanto um lugar para chamar de seu, um pequeno refúgio. Ao sentir medo nas mãos dos algozes pensara inevitavelmente na casa da tia, mas agora que estava em suas perfeitas condições (ou apenas sentia-se assim) percebeu que ansiava por mais. A fuga em que se encontrava era apenas mais uma fuga do seu leque invisível. Quando pararia de fugir?