domingo, 30 de maio de 2010

das/plumas/não/pintadas


[ Ilustração de Raquel Schembri ]

O cinza deveria ser dourado, ela dizia a si mesma. Mas não era. E a mudança de tons já não estava mais em suas mãos. Largara o pincel e limpava agora os dedos coloridos na água límpida que jorrava da torneira aberta. Era uma torneira dourada, pensou. Mas não adiantaria. Aquele brilho estava atado ao ferro, ao objeto inanimado. O dourado que ela desejava seria como o éter, imaterial como o éter.
Voltou às páginas em branco, ao cômodo quase vazio. Não fossem as folhas espalhando alvura pela mesa e os tacos do chão, aquele poderia ser apenas um cômodo. Mas aquele vazio fazia sentido a ela, estranhamente a preenchia. Diziam que sonhar é como pincelar uma tela em branco. O branco não a incomodava, ao contrário da profusão do arco-íris e os ruídos. Não escutava um só ruído, mas sentia pequenas vibrações a se espreitarem pelos tacos polidos. Algum som ritmado invadia o andar de baixo - ela não se preocuparia com isso. Vinte andares, centenas de cômodos, todos iguais aos dela e, no entanto, diferentes.
Serviu-se de uma caneca de café, o líquido negro fumegava, os grãos conservavam sua força mesmo após a trituração. Levou sua caneca aos lábios secos, enchendo-os de calor. Melhor que café só mesmo um conhaque, disse para si esboçando um sorriso frágil. A sensação estava entre os seus pequenos prazeres: permitir que o líquido aquecesse o interior de sua casca, vedando assim o vazio. Não seria diferente com as gaiolas; uma gaiola sem pássaro é uma gaiola livre, mas se mantém como prisioneira de si mesma, presa em sua condição de jaula. A não ser que criasse asas e também voasse. Mas as gaiolas não haviam aprendido a voar. Ainda...
...Ainda sentia falta de si mesma. Ainda sentia falta do calor que não provinha dos cafés. Sua casca trincava feito porcelana, suas lágrimas colavam seus trincos. E o ruído, de onde vinha? Dos tacos, dos passos. Queria asas de plumas douradas, a tinta acabara. E o que restara?
Abriu a janela, deixou que o vento entrasse. Pintou-se de cinza, desenhou longas asas. Que a tinta a levasse. Soltou os cabelos, moldura do seu pequeno rosto. Bebeu do seu café fumegante, apreciou novamente o gosto. Sentiu-se vazia, vazia e poeta. Teve medo de altura, preferia a segurança de sua bicicleta. Mas não pedalaria. Voaria. Cantaria. Em sonhos em branco, teceria, e pincelaria. Desapegou-se, libertou-se. Soltou os grilhões que já não via, aliviou-se. Faltava pouco, quase nada. Um impulso, um salto brusco; foi como canção entoada.
Elevou-se às alturas, maravilhada. Não há queda sem vôo, não há cume sem escalada.
E enquanto batia suas asas desejou avistar enseadas...
E enquanto os passantes passavam, notaram no asfalto um rastro:
Pequenas plumas douradas.