domingo, 3 de fevereiro de 2008

Homem de papel

Eu, um homem de papel. Nascido da pressão leve do nanquim sobre o papel branco; da imaculada transformação de tinta escura em palavras. Nasci e cresci, tal como as sementes do mundo, tal como as sombras na noite. "No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus." O tempo escreveu em mim com seus dedos, manchando a celulose das minhas veias com a tinta reluzente dos dias que seguem outros dias. Os dias se tornam anos e o passar dos anos deixou marcas pelos caminhos folheados: palavras escritas, palavras riscadas. Li em mim os versos, os sonetos, e as prosas que não que cessaram o prosear. Reconheci nelas a força, reconheci a ilusão. Meus braços cobertos de tinta ergueram-se em direção ao céu, e contra uma luz pálida e turva de um sol oculto compreendi as linhas que compunham esse meu corpo de papel. Hoje meu papel é gasto - cor de pó e odor de tempo. Hoje minhas linhas se perdem; manchadas, cruzadas, apagadas contra o fundo lido, e relido. E meu corpo já não diz nada, de tanto que ousou dizer. "Não me toque, não me leia", é o que eu direi a você. Não procure entender o que sugerem essas páginas amarrotadas, escritas por tantos, escritas em mim. Sou um homem de papel, mas o esquecimento há de ser o meu fim.