
baseado na peça: Amores Surdos
Sabia que o dia havia nascido, acompanhado de promessas infantis e candura. Não há como deixar de ouvir o canto dos pássaros, que trazem consigo a vontade do despertar. Aterrar os pés no chão; é essa a sensação de acordar. Vigiados pelo sol, meus pés mergulham na maciez acolhedora do carpete alvo. É assim toda manhã. A luz solar ilumina o que me cerca, me preenche de luz, me faz querer voar. Assim não há medo. Assim, não sou eu. As mãos dela afagam meu rosto – mãos de aconchego, dizendo em silêncio que jamais deixarão de estar ali. Minha mãe, meu caminho. Assim ela vai ser, até que as lembranças se percam. Minha irmã no quarto ao lado, já recebeu seu toque materno. Agora são todas minhas, as mãos da minha mãe. O que se escondem nas cortinas dos seus olhos? Que lágrimas são as que ela derrama, quando pensa estar sozinha? No meu quarto não há choro. No meu quarto, só existem mãos, e pés. “O almoço está servido”, ela diz, de avental florido e sorriso perolado. Mal sabe ela, as flores morrem no jardim. Sentamo-nos à mesa, e oramos ao Senhor. Que o Senhor escute minhas preces – eu sempre digo –, que as lágrimas vertidas sequem sob o sol. Minha mãe não escuta. Minha mãe cerra os olhos e pede outras coisas ao Senhor. Minha irmã grita em seu quarto, jogando livros e roupas pelo chão. Foi traída por quem amava, e todos sabem como são difíceis as coisas do coração. Minha mãe corta a carne na cozinha, abafando os gritos com um leve assobiar. Que pretende ela, salvar minha irmã com uma canção? Meu pai nos deixou há alguns anos. Talvez os corações não sejam tão fracos assim. Talvez por isso minha mãe sempre sorri quando vê um vizinho acenando no jardim. Aos domingos almoçamos fora, e as músicas despertam atenção. Minha mãe segura seu choro, eu finco meus pés no chão. Com um olhar tímido noto minha irmã, tentando em vão esconder a solidão. A solidão que a abraça, que abraça a todos nós. Solidão que nos une, solidão que cala a voz. Nossos amores são surdos, e mudos pelo temor de dizer. As mesmas mãos que me afagam, desaparecem ao anoitecer. E noutro dia, voltarei a fincar minhas solas em terra seca, segurando as verdades na palma da mão. Minha irmã engolirá sua dor, e minha mãe secará as lágrimas derramadas no colchão. Água salgada vira sorriso - silêncio, oração. Quer conhecer minha família, caro leitor? Devo alertá-lo: só não venha na contramão. Se espiar por entre nossas janelas, só verá coisas singelas, e acreditando nelas, irá embora, com seu coração na mão.