sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Mrs. Blues


Ficou claro na carta que eu a encontraria em Toulouse.
Tudo começou com a carta, anônima e amassada, anonimamente amassada. Chegara no primeiro dia do mês, levei na brincadeira e larguei-a em meio às coisas espalhadas pelo chão.
Meses depois, minha mãe veio fazer sua inspeção, ou visita materna, como gosta de chamar. Ralhou-me pela comida estragada, papelada esparramada e cama desfeita. Ao final do dia queria atirá-la docemente pela janela.
Foi então que ela pegou o envelope e me perguntou o que era. Depois de tanto tempo havia me esquecido dele e disse que havia sido enviado por algum amigo viajante.
Voltei a Belo Horizonte depois de três anos no Chile. A casa estava coberta pela poeira, pelo descaso e pela saudade de quem recria a palavra “lar” a cada volta pelas insondáveis ruas. Pisei no envelope pardo e estranhamente tive vontade de abri-lo.
As mesmas palavras: “Ela está em Toulouse”. A brincadeira, agora eu me lembrava... mas e caso... não fosse uma brincadeira... Esqueça, pensei. Pensei e encerrei a história, despejando os dizeres na lata de lixo.
“Você vai para Toulouse”, disse meu editor no dia seguinte. Como assim?, indaguei. “Departamento de relações públicas, não tenho nada a ver com isso”.
Fui.
Cheguei finalmente em Toulouse, cansado do vôo, cansado de viagens, cansado de tentar buscar o substancial de tudo ao meu redor. É difícil assimilar que a vida é mais multifacetada que uma sala de espelhos e mais escorregadia que um peixe em fuga. Tantos anos caminhando, para constatar a cada acordar que a vida prega peças, e tentar decifrá-la é por vezes como socar inutilmente um muro de espinhos. Sentei na cama do hotel e senti vontade de chorar.
Não chorei. Não. Chorei.
Andei pelas ruas frescas, admirando os pequenos quadros que compunham aquele cenário. Acenei para as pessoas com seus sorrisos amarelos e senti no ar a sensação de transcendência sob as cores fortes; você começa a viajar muito e percebe aos poucos que as viagens aguçam sua percepção, e na tentativa de enxergar o detalhe ignorado por todos, algo estranhamente significativo às vezes surge aos olhos. É lindo quando isso acontece. É lindo quando você não esquece.
Entrei por uma ruela suja, cheirava a mijo seco - camisinhas estouradas espalhadas pelo chão frio de pedras. Senti que deveria entrar em alguma das casas escuras e foi o que fiz. Desci lances de uma longa escadaria, atravessei corredores silenciosos e ouvi passos distantes. Ninguém à vista.
Adentrei a sala - cadeiras velhas de madeira, o pequeno piano no pequeno palco - e fui mergulhado na minha inexperiência de vida. Como estar pronto para aquilo? Não havia como.
Vi, e senti.
Ela cantava no meio exato do palco - flores nos cabelos negros, o olhar de uma melancolia cintilante, e brilho luminescente de quem não poderia mais estar nesse mundo -; cantou, e sumiu misteriosamente como tinha surgido. Perdi os sentidos. Acordaram-me. Vi apenas a flor no palco, não ousei tocá-la.
Nunca mais voltei em Toulouse... e até hoje, quando relembro esse sonho, não sei dizer se aquela voz no palco cantou atraindo a minha tristeza, ou se foi a minha tristeza que atraiu a sua canção.