domingo, 15 de agosto de 2010

Presente de Casamento


...Começou com um beijo, um beijo correspondido. Dois lábios, um de encontro a outro, a maciez do primeiro toque, o abrir vagaroso das bocas, a respiração unificada, as línguas deslizando lentamente em direção à entrega mútua. Um beijo. Seguido de olhares intensos, que perpassam a carne e os ossos e os invadem, chegando à alma. O olhar que desnuda e revela; que lança sonhos de éter, quebram partículas em mistério. Despidos, souberam que assim continuariam.
Anos depois, estavam diante de um altar. Ela vestia o branco das noivas, ele vestia o negro dos noivos. Trocaram juras de amor e selaram o pacto com um beijo.
Chegaram em casa, abriram presentes, sentiram no ar o sopro de uma vida que [re]começava. Dentre as várias caixas encontraram uma chaleira, um jogo de xícaras, pacotes de chá e pó de café. Acharam curioso; ela achou graça quando deslizou as mãos pelo corpo da chaleira – algo na forma dela a fez voltar aos filmes antigos, em que as donas de casa americanas preparavam o café da manhã para o marido trabalhador e as crianças. Sorriu ao imaginar-se uma dona de casa americana dos anos 50. Ele sorriu ao vê-la sorrir. Os anos 50 permaneceriam nos filmes nesse caso, não restava dúvida aos dois. Na caixa em questão havia um bilhete, um único bilhete datilografado em uma máquina de escrever antiga – e sabiam disso pelo contorno rebuscado das letras escuras. Nele estava escrito: “Não se preocupem. O primeiro beijo sobreviverá à ampulheta.” Não entenderam a piada sem graça, e voltaram a atenção aos presentes ainda embrulhados.
A rotina do casal firmou-se com leveza, com a naturalidade com que os ipês amarelos florescem após os roxos. E ao raiar do dia ele se levantava para ir ao trabalho, ela se espreguiçava na cama e permanecia ali por alguns longos minutos, deixando as asas fechadas aquecendo o corpo. Ele ia em direção à cozinha e servia-se de uma caneca de café. O aroma flutuava até o quarto, onde ela sonhava acordada. Levantava então, limpando as plumas soltas que deixava pela cama, colocando-as numa caixa de madeira sobre a cômoda; ele gostava de colecionar suas plumas, plumas de anjo trazem sorte, é o que ele dizia a ela quando a beijava ao acordar. Tampada a caixa, ela ia ao encontro dele na cozinha, e tomava o café fresco junto a ele.
Os anos transcorriam, e a vida operava sua mágica, orquestrava sua sinfonia. Problemas, prazeres, tragédias, soluções, tempestades e calmaria... a vida seguia incerta como ordena sua natureza, e a metáfora da ampulheta como um dia após o outro fez sentido a eles, embora não se lembrassem do bilhete que haviam recebido junto ao presente de casamento.
Quando passeavam pelas praças notavam a dinâmica dos mais variados tipos de casais. Percebiam que quanto mais velhos os amantes eram, mais brigas e apatia se abatiam sobre eles. No início achavam graça, mas diante de tantas repetições, temeram. Lembraram-se de uma música, em que num determinado verso ouvia-se: “Um dia um caminhão atropelou a paixão. Sem teus carinhos e tua atenção o nosso amor se transformou em ‘bom dia’...” Deram-se as mãos. Não queriam que fosse assim.
Só foram entender a mensagem do pequeno bilhete datilografado quando acordaram, vinte invernos depois, numa tarde em que a chuva caía límpida contra as janelas. Ele acordou primeiro, dirigiu-se à cozinha e preparou duas canecas de café fumegante. Ela veio logo em seguida, abraçando-o por trás, deixando cair sobre o rosto dele as madeixas perfumadas do seu cabelo. Ela disse “bom dia”, ele respondeu com um sorriso. Beijaram-se. Um beijo correspondido. Dois lábios, um de encontro a outro, a maciez do primeiro toque, o abrir vagaroso das bocas, a respiração unificada, as línguas deslizando lentamente em direção à entrega mútua. Um beijo.
Talvez o amor seja isso, é o que a chaleira pensaria.
Isso, é claro, se as chaleiras pensassem...