E então fui tocado por Desejo...
Desejo apareceu com seus olhos dourados e minha vidinha nunca mais foi a mesma. Entrei em minha casa nojenta, pisei naquele chão sujo e gorduroso, ouvi o rangido da cadeira de balanço e soube imediatamente que minha mãe decrépita estava em seu quarto empoeirado. Passei pela cozinha fedida mal conseguindo suportar o cheiro de comida estragada, de leite azedo que gato algum seria capaz de beber e desci as escadas em direção ao porão, meu abafado e escuro refúgio. Fechei as cortinas puídas da única janela minúscula e me dirigi ao espelho. Ali estava a imagem da miséria humana - do que de pior pode acontecer a um animal que pensa e sente. Analisando minha imagem cadavérica refletida, pensei que talvez a morte fosse mais digna e mais limpa; por um momento a desejei, enfeitiçado pelo vislumbre do que poderia ser uma fuga redentora. Dedilhei meus dedos esqueléticos pelos meus cabelos cheios e ensebados, toquei meu rosto macilento e oleoso, analisei minhas unhas longas, de um amarelado opaco; notei que o castanho dos meus olhos já havia se apagado, apodrecido talvez. Restava apenas o vazio de alguém que não conseguia mais sonhar. Tudo ali eu reconhecia, tudo ali era meu, e a tudo eu amaldiçoava. E no entanto, um sorriso... um sorriso estranho sobre os meus dentes manchados? Aquele sorriso nunca havia sido meu! Há tanto tempo eu não sorria, há tanto tempo meu olhar permanecia vidrado e vazio, meu sorriso apagado como lembranças vagas, lembranças que de tão antigas já não me pertenciam. Seria Desejo? Será que a minha vida miserável havia mesmo mudado como disse que mudaria? A memória me pregou uma peça certeira como um tiro, lampejos voltaram velozes como vento e queimaram minha mente como fogo. Ouvi a voz do espelho. Por que me xingava novamente?! Por que me dizia tudo aquilo que eu tentava esquecer a cada segundo dessa vida quase morta?! “Seu garotinho de merda! Cresça e seja homem! Não tente ser quem você não é porque sempre será essa criatura pequena com sua vidinha insignificante! Pare de se vitimar, pare de molhar o chão com esse mijo nojento ou esfrego nele essa sua cara de fracasso!” Não grite assim comigo, amigo espelho, por favor, por favor! “Pare de implorar como uma menininha e seja homem! Pare de se vitimar, já disse!” Por favor, não faça isso, amigo espelho, está me machucando! “Nojo! Tenho nojo de você! Aonde pensa que vai chegar com sua vida imprestável?! Por que não faz um favor ao mundo e fure seus olhos com a ponta de uma tesoura? Por que não desaparece, seu merda, por que não desaparece?! Ou pelo menos seja homem, seja homem e veja o mundo, erga esse seu olhar cego, esse seu olhar vazio!” As lembranças me atingem em cheio, minha cabeça dói, sinto meu peito fraco e pronto a explodir! Pare, pare, pare, fui tocado por Desejo, minha vida está diferente agora, EU SOU DIFERENTE AGORA! PARE ESPELHO, EU EXIJO QUE VOCÊ PARE AGORA!!!!! O espelho se cala, as lembranças esfriam e recupero meu fôlego. Tenho medo, medo do que pode acontecer quando o silêncio sumir, quando o fogo voltar. Ele sempre volta. Sempre volta. Levanto a cabeça lentamente de encontro ao espelho mudo. Não reconheço aqueles cabelos sedosos e perfumados, aquele brilho estelar nos dentes brancos e perfeitos, aquela cor dourada de pele saudável e abençoada, aqueles músculos impecáveis de Davi e aquela luminescência no olhar, contendo os sonhos vivos e esperançosos que nunca antes ousei possuir! Aquele não era eu, aquele não podia ser eu! Que armadilha é essa pregada pelo destino?! Quais males mais podem atingir uma mente e um coração desgraçados? Então me lembro de Desejo, de seu toque e suas palavras. Minha vida mudou. Minha. Minha vida. Mudou. Toco meu novo rosto e volto a sentir a aspereza da vida que acabei de abandonar. Por um segundo, sinto o estranho arrepio de tocar a carne pútrida e macilenta, enxergando no espelho a pele majestosa de deus. Sinto nojo pelo que não consigo mais ver! Não, nunca mais! Não! Não! Não! Obrigado, Desejo, obrigado... Verei agora o que antes me era oculto, verei sim! Verei as cores e alegrias de um mundo que eu não conheci, você me paga espelho, vai engolir suas palavras desgraçadas! Você há de engolir todas elas! Desejo. Desejo, minhas lágrimas não são nada comparadas à eterna gratidão a você. Obrigado Desejo! Obrigado! Obrigado! Desejo. Desejo. Os dias avançando, o sol brincando com a noite, a vida em seu ritmo de mudanças constantes. Ouço minha mãe balançando em sua cadeira velha, talvez já esteja morta, quem poderia saber? A fome aumenta, a acidez dos meus dejetos espalhados pelo quarto adentra minhas narinas e prendo inevitavelmente minha respiração. Não posso sair daqui, não posso! A sede é quase insuportável, minha garganta arde, clama, suplica; e pensar na comida, pensar no seu cheiro me dói mais que ser queimado vivo. A dor preenche o vazio, retorce meus órgãos, sufoca os sentidos. Mas ficarei firme, porque minha vida agora é doce como o mundo encantado do mel, onde as criancinhas brincam com as fadinhas, e eu, eu sou alguém, eu sou bonito e tenho esperança, tenho desejos! Os dias e seu rastejar, mantenho meu corpo sorridente imovél diante da minha imagem espelhada. É então que noto, noto uma sombra por trás do vidro. Será alucinação ou vejo você por trás do espelho? Desejo, é você quem vejo aí? É você quem vejo aí atrás, rindo? Por que ri, Desejo?! Por que... por que caçoa de mim? Por que caçoa de mim?! Não quero abandonar minha nova vida, por isso faço o que faço. Como pode me recriminar?! Qual a graça nisso?! Por que caçoa de mim?!?!? Desejo, fale comigo!! Por que caçoa de mim, Desejo?!?!? DESEJO!!!!