domingo, 10 de maio de 2009

(7 Perpétuos & 7 Contos de Ilusão - Parte II)


E Desespero me envolveu em sua névoa cinzenta...

Senti a noite mudando, como se o mundo todo ao meu redor estivesse engolido por essa mudança, mudança das que atingem os corações que clamam. O cais foi sumindo naquele estranho lampejo, as pedras da calçada foram varridas pela névoa cinzenta que acompanhava toda aquela irrealidade de um mundo irreal e foi então que me vi atirada naquela tarde quente... Ele havia me traído, e não se importou em ser pego no flagra. Sorriu, o canalha. Sorriu, enquanto me via parada à porta, vestindo o meu melhor vestido, no que poderia ter sido o meu melhor dia. No entanto, ali estava eu, vestida, petrificada; ele sorriu enquanto beijava o pescoço delicado da minha irmã que eu tanto amei; sorriu na nossa cama, na cama que escolhemos juntos entre juras de amor eterno e beijos de pura intimidade. Notei meu corpo enfraquecer, as lágrimas cortarem os olhos, as palavras afogadas em tamanho turbilhão emocional. A insanidade ameaçou minha mente e minha mão tombou, o vaso de flores caiu despedaçado. Minha pequena irmã virou o rosto em direção à porta, viu meu amor despetalado pelas flores do vestido estampado. Chorou baixinho minha pequena irmã, nua, suja. Deixei meus cabelos cobrirem meu rosto; não conseguia olhar, não conseguia. Vi os cravos estendidos pelo assoalho, a terra preenchia cada vão entre as tábuas, e fui sem aviso atirada naquela noite sem nuvens... Minha mãe morria no jardim, e eu não conseguia escutar. Brincava com minha boneca e minha mãe morria, pobre mãezinha. O rádio berrava na varanda e só a melodia metálica da música entrava em minha cabecinha; os gritos sufocados da minha mãe se perderam nas velhas canções. A música parou, estranhei o silêncio e me deparei com seu corpo imóvel e ensanguentado, caído entre os cravos que ela tanto adorava. Ouvi os passos desesperados do fugitivo, o ronco da moto que não vi. Tentei gritar, não consegui. O ronco me cobriu de cores e fui atirada naquele dia nublado... Pensava que a vida poderia ser linda e tive esperanças como nunca antes quando ouvi o motor da moto escura se aproximando da praça. Ele chegava com sua rebeldia e suas promessas de amor louco, me envolvia com seus 18 anos e sua inconsequência; seríamos os donos do mundo, fugiríamos para as estrelas e nada poderia nos impedir. Seríamos Bonnie & Clyde! Desci as escadas do coreto carregando minha mochila pesada, montei na garupa do meu anjo caído e nos perdemos na longa estrada, entre paisagens indescritíveis e pensamentos de libertação. À noite, parou num motel barato no meio do nada. Disse a ele que não estava pronta e fui violentada bem ali pelo meu anjo caído, meu rebelde sonhador. Não ouvi promessas de amor enquanto a dor me tomava, ouvia apenas insultos secos e solitários. Fui deixada naquele motel e nunca mais o vi. O cheiro de sêmen me fez vomitar e fui repentinamente atirada naquela noite abafada... Eu o matei, o desgraçado sorridente. Não iria mais tocar em minha pequena irmã, não iria mais tocar em mim. Deixei que pensasse que estava arrependida, que nosso amor era maior que uma traição. Deixei que fosse enganado por sua própria estupidez; alguns homens não pensam com a cabeça de cima, a vida me ensinou isso e eu aprendi a lição. Decepei o membro rijo do desgraçado e me deliciei com seu sangue espirrando nas paredes decoradas, na cama redonda de cetim daquele motel luxuoso. Vi cravos em minha direção e fui dominada por um furacão gélido coberto por janelas, carros na estrada, monstros deformados, beijos luminosos e sem que pudesse controlar meus pensamentos senti o poder do mundo, a justiça havia sido feita! Pensei que ficaria bem; afinal, havia quebrado as leis, reconstruído uma relação de poder! Mas eu corria, corria com todas as minhas forças e não podia parar de correr! Acordei, sonhando, e assim segui, como alguém que morria para nascer. Eu era a fugitiva, a justiceira da insanidade, a puta santa que mudaria seus caminhos de pecado sacro e seria esquecida para sempre, amém... Fui caminhando sem saber o que dizer, sem saber o que fazer com minha vida suspensa e decidi atirar meu corpo ao mar, subir aos céus como a santa perdida. Tomei o absinto proibido, engoli as pílulas que não eram minhas e sonhei com as cores - o mundo tocava meu rosto queimado e cheirava a ondas do mar. Vi uma infinidade de janelas pequenas, penduradas no vazio, presas nas cores inconstantes que dançavam na escuridão. Cheguei ao cais, estava pronta para o meu salto sagrado e insano, minha perdição colorida, meu último ato. Mas não consegui. Percebi que a noite estava mudando. As pequenas casas se dissolveram no ar como pó e me percebi sozinha, perdida em tamanha densidade, cansada de correr. Senti que aquele estranho abraço gélido me envolvia; minha garganta secou, minhas mãos trêmulas tombaram e senti meus nervos à flor da pele. Experimentei todos os piores sentimentos juntos na massa de frieza aguda, de ferina insensatez, como se mãos pesadas agarrassem e apertassem o meu coração. Eu não era uma santa, não era a maldita justiceira! Era uma garota perdida, perdida e acuada em seu próprio DESESPERO! E foi assim que ela apareceu, surgiu da umidade da névoa, corpulenta e cinzenta, se é que alguém pode ser cinzento. Seus caninos brilharam contra a noite, seus minúsculos olhos, úmidos e desbotados me encararam com toda perspicácia e não ousei enfrentar a força esmagadora daquele olhar. Senti ameaça bruta e real, senti força rochosa, estava tudo ali, carregado no ar. Ela se aproximou lentamente, senti nos movimentos uma paciência sublime e surpresa, percebi que essa calma contrastava imensamente com sua figura ameaçadora. O medo me tomou por completo e estava pronta para o pior quando ela me tocou com seus dedos frios e pegajosos como pele de cobra. Seus seios grandes e desnudos roçaram nos meus e ela falou com uma voz que não passava de um sussurro rouco:
- Que pretende?
- Não sei.
- Que pretende?
- Preciso fugir, mas o cansaço...
- Do que foge?
- Não sei. De mim mesma.
- Por que foge?
- Não sei.
- Diga por que foge.
- Por tudo.
- Perdida...
- Nunca estive tão perdida... Nunca estive tão só.
Chorei como uma pobre criança, chorei como minha pequena irmã. E foi então que a verdade me atingiu com toda sua força devastadora; foi então que senti todos os pêlos do meu corpo se arrepiando, meus sentidos perdendo o rumo na recente sanidade destrutiva. Foi como se uma Revelação Divina tivesse esmagado meu peito com o impulso de um tufão! Seria ela...? Ela me tocou novamente e me deixei cair sobre meus joelhos. Como poderia...? Um lampejo atingiu meus olhos, estava perdendo meus sentidos e não havia nada que eu pudesse fazer. Medo. Acordei no hospital, cercada de médicos e estudantes de medicina que me olhavam com curiosidade. Vi um policial por trás dos jalecos, certamente me levaria dali. Os médicos disseram coisas, termos médicos que eu não conseguia compreender e foram embora. Só um dos alunos permaneceu, seu jaleco iluminado pela luz fraca do sol.
- Você sempre fala quando dorme?
- Eu falei?
- O tempo todo, sempre a mesma frase.
- E o que eu disse?
- “O desespero... é doce”, é o que você dizia.
Senti meu coração apertado por mãos pesadas, não consegui me mover. Ouvi pássaros cantando lá fora. Pássaros sempre me lembram cravos...