quinta-feira, 14 de maio de 2009

(7 Perpétuos & 7 Contos de Ilusão - Parte III)


E Destruição surgiu, e apagou o meu cigarro...

“E a luz resplandece nas trevas”. A tela do pequeno notebook acendeu em azul, iluminando meu quarto, machucando meus olhos. Das caixas de som tilintava a voz arranhada da cantora morta, a MPB nunca pareceu tão triste afogada na luz azulada. Encarei a tela, sua luminosidade a me estagnar; assim perderia minha história. E essa era uma história importante, das mais intrigantes, daquelas que precisam ser contadas. Era sobre Destruição dos Perpétuos e esse era o grande trunfo. Vejam bem, os Perpétuos não são deuses, já que os deuses morrem nos corações dos homens. Os Perpétuos vivem, desde antes do primeiro passo do primeiro homem até que a última criatura vague pela pequena Terra. São sete, os Perpétuos: Desejo, Desespero (que é irmã gêmea de Desejo), a caçula Delirium (que num passado remoto foi Deleite), Devaneio (ou Sonho, como é mais conhecido), Desencarnação (ou Morte, para os íntimos), Destino que é o mais velho e por fim, Destruição. Desse último, só havia mistério; Neil Gaiman, o escritor por trás dos Perpétuos não havia revelado quase nada a seu respeito, até a tarde nublada em que as coisas mudaram, fatos somados que fizeram minha mente ligar pontes e construir significados. A idéia surgiu no carro, e veio com uma lembrança, a lembrança da tarde nublada. A avenida mergulhava em silêncio e eu mergulhava em Chico Buarque, com seu sambinha de coração aberto. As luzes amarelas dos postes encenaram belo contraste com a escuridão das esquinas e ruelas. A noite gritava frio, e não vi ninguém nas praças redondas, nem mesmo no alvo Palácio das Artes, sempre iluminado às sextas, à espera do público fiel. Sem aviso, minha mente foi inundada por pensamentos intensos, dos mais variados. Acontece sempre quando dirijo à noite, não consigo evitar. Pensamentos tão fortes que se cruzam com tamanha velocidade raramente chegam a algum lugar, e quando isso acontece você começa a questionar se vale à pena chegar a lugares desprovidos de garantias. Senti o grande impacto do cruzamento e decidi estacionar o carro próximo ao Conservatório de Música antes que houvesse uma batida. Andei ao longo da avenida deserta, ouvi o grito dos céus e ele anunciava chuva, exatamente como naquela tarde nublada. Avistei a banca iluminada na Praça 7 e decidi ir até lá, folhear alguma coisa. Encontrei jornais e revistas que falavam das guerras, da fome, das mortes e assaltos, sequestros, fratricídios, matricídios, doenças e epidemias devastadoras, imensas quantias de dinheiro desviadas no Congresso, casas derrubadas e cidades inundadas pela ira bíblica da natureza, índices altíssimos de desemprego, pessoas pisoteadas em shows e todas as desgraças possíveis e imagináveis! Foi então que me lembrei de Destruição, como se um soco tivesse acertado meu estômago; foi nessa lembrança urgente que ele invadiu minha mente, rápido, implacável. Com o peito dolorido, permiti. Veio à memória a tal tarde nublada, meses atrás, em que eu havia saído de algum bar e esbarrado em desconhecidos. Percebi um rosto familiar entre os estranhos, uma amiga dos tempos de colégio, e esbocei um sorriso de reconhecimento. Katchoo, esse era o apelido. Era linda a Katchoo, e o tempo havia lhe feito tão bem. Ali estava o mesmo olhar de doçura, o mesmo sorriso tímido. Os relâmpagos ameaçaram e fomos correndo até o sebo em que costumávamos ler todos os gibis enquanto fugíamos da escola. Lá encontramos as antigas aventuras, os antigos heróis e um belo encadernado de Sandman veio parar em minhas mãos. Contos ilustrados sobre os Perpétuos. Sensacional! Folheei pacientemente e me deparei com o inacreditável. Destruição estava ali, claro, vivo, como nunca antes! Nunca dois geeks foram tão felizes! O enigmático Destruição, o Ausente dos Perpétuos estava bem diante dos nossos olhos e tudo fez sentido! Ele estava no coração dos sóis, era a alma da fissão nuclear, e através de seu espírito destrutivo planetas ganhavam vida.
- É completamente fascinante! – ela disse abismada.
- Parece é um slogan punk: “Crie através da destruição”.
Zombei, mas... sabia que aquilo era simplesmente imperdível e mágico! A simples idéia de que Destruição não precisa ser necessariamente um fim ou algo ruim, mas a possibilidade de um novo começo, aquilo era brilhante! Voltei da lembrança com a dor intensificada que senti no peito e vi novamente a banca iluminada. Notei as primeiras gotas da chuva, caíam com suavidade. Tinha me esquecido. Algo naquela tarde me fez esquecer da história, e só observando aqueles jornais e revistas, aquelas manchetes horríveis, só assim me lembrei. Aéreo, entreguei uma nota ao vendedor e pedi um maço de cigarros. Observei aquela caixa como se nunca tivesse comprado cigarros, como se não tivesse anos antes fumado cerca de dois maços por dia. Minha mente estava dominada! Escreveria a história de Destruição e ele seria finalmente desvendado, desconstruído, como foi naquele conto ilustrado. Contaria o que foi ocultado, revelaria a verdadeira essência do paradoxo. Refiz o caminho até o carro, a chuva encharcava minhas roupas e Destruição ganhava contornos nos meus pensamentos. Subi os degraus de pedra, adentrei o hall deserto do prédio, subi os lances de escada até o segundo andar e abri a porta. Tirei minhas roupas molhadas, fui até a janela do quarto e acendi o primeiro cigarro. Traguei, o cheiro me deixou tonto; nunca me acostumaria com aquele maldito cheiro, não depois de todo aquele tempo. Liguei o a aparelho de som, fui até a cozinha e encontrei a caixa de comida chinesa aberta na geladeira. Devorei o macarrão gelado e os empanados em cinco garfadas. Deixei que meu corpo caísse no chão empoeirado e joguei minhas costas contra a parede de tijolos; pensamentos elétricos em cruzamento, o tráfego avassalador. Fui ao banheiro, tomei as pílulas com uísque e senti um nó no estômago que me fez desejar uma morte rápida e indolor. Não era o suficiente, precisava de mais. Fui ao quarto, abri a gaveta que jurei não abrir mais e tirei toda a cocaína que eu tinha. Uma hora depois não sabia quem eu era, o que eu fazia, o que eu pensava. Minha única certeza era a de encontrá-lo, escrever sua história, preencher a lacuna. Algo no cruzamento elétrico me deu a certeza de que minha desesperada sede de autodestruição o traria. E foi então que o vi, sentado nas sombras. Observava atentamente os tijolos gastos e fixou repentino o olhar no meu corpo caído ao chão; lágrimas caíam dos meus olhos injetados, um filete de sangue escorria do meu nariz e sussurros desconexos saíam da minha boca aberta. Imaginei meu estado miserável, visto através daqueles olhos intensos e me envergonhei profundamente. Ele levantou e caminhou lentamente, ajoelhando-se próximo à imagem vergonhosa que eu havia me tornado. Vestia uma blusa de lã bege e uma calça de algodão cinza. Passaria despercebido em qualquer lugar, a qualquer hora. Mas seus cabelos jamais poderiam me enganar, aqueles cabelos longos e ruivos, acesos como fogo. Ele sorriu amigavelmente, não consegui desviar meus olhos.
- Esse não é o melhor caminho, sabe... – ele disse.
Passou a mão quente sobre a minha cabeça e me senti aliviado, como se o meu corpo estivesse repentinamente travando uma luta contra toda aquela química. Ele foi até o quarto, apagou o cigarro dizendo em tom zombeteiro que cigarros não eram coisa boa e que acesos podiam provocar incêndios. Sorria. Retornou, jogando o maço na lixeira e fui percebendo que meus sentidos aos poucos voltavam, estavam mesmo se alinhando. O cruzamento de pensamentos se transformou em elucidação e estava pronto para desvendar o misterioso paradoxo de Destruição quando ele desapareceu nas sombras projetadas pelas cortinas fechadas, deixando aos ventos minhas indagações desesperadas. Fiquei imóvel, apenas imóvel, deixando que as horas passassem até que eu me sentisse bem. A madrugada se enaltecia de escuridão, a tela do pequeno notebook acendeu em azul e meu quarto foi iluminado pela luz azulada. Encarei a tela, sua luminosidade me estagnava; assim perderia minha história. Mas então pensei... Não faz mal... Não faz mal... Desliguei o notebook, a tela apagou e fiquei no escuro, continuando a melodia da canção que se foi, junto à luz azul. “E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam”.