domingo, 17 de maio de 2009

(7 Perpétuos & 7 Contos de Ilusão - Parte IV)


E Delirium a abraçou forte, forte, forte...

E então o papai me jogou na parede e fez coisas estranhas que me machucaram muito. Não entendi por quê ele ficou em cima de mim fazendo aquelas coisas. Eu estava chorando papai, eu estava chorando muito e o senhor nem prestou atenção. Por que continuou fazendo tudo aquilo, papai? Eu tentei fechar a boca, eu não queria apanhar por estar chorando, mas eu não consegui, não consegui. De repente o papai parou de fazer aquelas coisas e me disse que aquilo era nosso segredo. Daí ele percebeu que eu estava chorando. Ele me bateu e mandou eu parar de chorar, mas eu não conseguia, estava doendo papai, o que eu podia fazer? Jurei que não ia contar pra ninguém, ia ser o nosso segredo, ia ser o nosso segredo sim. Papai mandou eu vestir minha roupinha, me deu a mão e me levou na sorveteria. Lá eu tomei um sorvetão de morango com cobertura de chocolate e eu pensei que eu ia conseguir parar de chorar, mas eu não consegui e o papai ficou bravo de novo. Passou muito tempo e o papai não disse mais nada. Aí chegou o dia do meu aniversário mamãe me deu uma boneca de pano. Ela não tinha cabelo e seus olhinhos eram coloridos e brilhantes, um era azul e o outro era verde. Abracei forte forte forte minha boneca linda e coloquei um nome nela: Deivi. Coloquei esse nome por causa de um moço muito estranho ou uma moça muito estranha que aparece na televisão cantando de vez em quando. A gente nunca sabe se é homem ou mulher porque ao mesmo tempo que parece que tem corpo e voz de homem se veste e se pinta como mulher. Ele ou ela tem um olho de uma cor e o outro de outra, por isso achei que combinava com a minha boneca. O nome é difícil, parece inglês ou espanhol ou francês, mas pensando bem, pode ser chinês. Acho que é mais ou menos assim: Deivi Boui. O tempo foi passando de montão e eu sempre dormia abraçadinha com a Deivi, olhando com medo pra porta, com medo do papai entrar e fazer coisas estranhas de novo. Abraçava a Deivi forte forte forte e só conseguia dormir quando ela falava: “Pode dormir criança, meus olhos desiguais vão proteger você”. Não sei o por quê de ela falar essas coisas, e falou tantas vezes que eu decorei, mas eu ficava tão bem e me sentia tão protegida! Dormia e tinha sonhos bonitos. Aparecia sempre um homem nos meus sonhos, um homem branco e alto, era magro e tinha cabelo preto e bagunçado. Os olhos dele eram pretos e não tinha nenhuma parte branca, parecia o céu de noite e saíam luzinhas bem escuras deles. Eu sentia medo quando olhava aqueles olhos. Nos meus sonhos, o homem vinha conversar com a Deivi, falava pra ela umas coisas que eu não entendia e ela respondia sempre sorrindo. Quando eu acordava, esquecia tudo e só ia lembrar do sonho na escolinha, de tarde. Numa noite de chuva papai voltou no meu quarto querendo me machucar. Eu comecei a chorar e gritei gritei gritei. Ele não parou, me segurou forte e eu fiquei com muito medo. Foi aí que eu peguei a Deivi e abracei ela forte forte forte. Deivi, me ajuda! Me ajuda! Me ajuda! Daí tive o sonho mais estranho do mundo. Sonhei que a Deivi tinha virado uma menina muito estranha e bonita. No sonho ela também era careca e tinha um olho verde e outro azul, mas ela não usava vestidinho rosa, usava umas roupas esquisitas e rasgadas, uns brincos nas orelhas e no nariz. No sonho, papai chorava quando ela falava alguma coisa pra ele e tudo ficava colorido, como se aquilo não fosse sonho! Será que era? Ele chorava muito e me pedia desculpas, mas eu tive medo e não quis encostar nele quando ele chegou perto de mim. Ela falou outra coisa e apareceram muitas borboletas coloridas. Papai foi embora e nunca mais vi ele. Sabe por que eu não consigo entender se aquilo foi sonho ou não? Depois que eu acordei, papai não estava mais no meu quarto, e quando o sol apareceu e eu perdi o medo e fui no quarto dele, só a mamãe que estava lá, sozinha. Ele tinha mesmo ido embora e nunca mais vi ele. Quando voltei pro meu quarto, vi um monte de borboletas e corri pra abraçar a Deivi, abracei forte forte forte e essa também foi a última vez que vi ela porque depois que eu voltei a dormir ela sumiu. Mamãe chorou muito quando papai foi embora, disse que não ia conseguir pagar todas as contas e que a gente precisava do dinheiro do papai pra viver. Mas depois ela parou de chorar porque deram um aumento pra ela no trabalho e ela ficou muito feliz. Acho que a mamãe não amava o papai porque depois que conseguiu pagar tudo sozinha ela ficou feliz como nunca vi ela ficar. Ela começou a se importar muito comigo, sempre queria saber se eu estava bem, brincava comigo de guerra de travesseiros e era tão engraçado, assistia comigo os desenhos e sempre ouvia quando eu falava que tinha batido em algum menino da escolinha por ter me chamado de gorda - justo eu que não sou gorda, sou fofinha! Nunca vou esquecer a Deivi, a boneca mais bonita e estranha do mundo. Ela foi meu anjo da guarda, minha borboleta que me salvou e por causa dela hoje eu sou super feliz com a mamãe. Fico pensando se vou encontrar a Deivi de novo. Fico até imaginando que estou vendo ela às vezes e minhas amiguinhas da escolinha acham que eu vejo coisas. Mas eu juro que eu vi uma menina na praça ontem quando voltava pra casa no carro da mamãe e tinha alguma coisa estranha acontecendo; estava chovendo muito, muito, e ela parecia gostar muito da chuva porque estava deitada na grama com os braços abertos e parecia uma borboleta bonita com as asas abertas pro céu. Ela levantou a cabeça olhando direto pra mim e mesmo de longe eu consegui ver que um olho parecia azul e o outro verde. Ela abriu um sorriso e eu dei tchau, sorrindo também. Nunca mais encontrei uma menina como aquela, tão parecida com a minha boneca Deivi, meu anjo da guarda, a minha amiga borboleta...