terça-feira, 19 de maio de 2009

(7 Perpétuos & 7 Contos de Ilusão - Parte V)


E Sonho tinha estrelas mortas em seus olhos...

Pensei se tratar de um sonho. Pensei estar mesmo dormindo. Por um segundo me pareceu obrigatória a necessidade de não acreditar, mas era inevitável, possibilidade e descoberta. Sim, porque você sabe quando está acordado, você sabe quando o impossível acontece e muda tudo ao seu redor – coisas assim a gente não contesta e “ponto final”, como diria minha avó. Havia deixado de vez meu quarto escuro e não poderia mais tocar as paredes negras ou as cortinas verdes; não poderia mais ouvir The Clash quando quisesse e não poderia mais folhear os gibis do Dylan Dog com suas páginas amarelas e seu cheiro de naftalina. Nada disso importava, não mesmo. Não sentiria falta do que não precisava mais, esse é o lance das verdadeiras necessidades: descobrir as falsas e abrir mão delas sem olhar pra trás. A vida é feita de escolhas, não é? Gostei de pensar que eu iria agarrar aquela possibilidade improvável e fazer daquele meu momento de consciência plena minha fuga grandiosa. E pensar que tudo começou na noite em que fui ao hospital psiquiátrico. A velha no corredor parecia sedada, seus olhos pareciam de vidro. Ela disse com todas as palavras que havia visto o homem de olhos negros no sonho. Porra! Eu não estava pronto pra tudo aquilo! O choque foi tão grande e inesperado que eu me vi mergulhado em escuridão, perdendo a consciência naquele momento de confirmação. Naquele hospital branco e frio eu caí. Chamaram minha irmã. Acordei me deparando com seu jaleco branco. Minha visita inesperada e o que aconteceu no corredor fizeram com que ela ficasse preocupada, era nítido no olhar. Veio o sermão de irmã mais velha e toda aquela merda que um cara de 16 anos detesta ouvir, mas isso não era importante, nada disso importava. Eu sei bem o que senti e isso me bastava. Não vi mais a velha sedada e não precisava de confirmações através do seu olhar louco e vidrado porque sabia que existia uma verdade em tudo aquilo. Tudo pareceu se encaixar no grande quebra-cabeças que eu havia montado com o passar dos anos e decidi voltar pra casa. Ela ligou, minha irmã. Ligou do hospital várias vezes perguntando por mim, se eu havia perdido novamente a consciência ou se eu parecia doente, coisas assim. Comecei a me sentir perseguido e soube que não era paranóia. Todos seguiam meus passos, receosos de que algo de anormal pudesse acontecer. Aconteceu, e lá estava eu, pronto para o grande plano, pronto para o inevitável. A velha estava certa, eu estava certo. Alguém rege mesmo nossos sonhos, não sou louco como pensava e talvez a velha também não seja. Talvez os loucos estejam aqui fora; talvez a verdadeira loucura seja o que aceitam como normal e a vida não passe de um grande circo armado em lona invertida. Adormeci e sabia que o encontraria, o homem dos olhos negros. Desde pequeno me sinto atraído pelo fantástico, pela imaginação que anda sempre ligada aos sonhos e ao que chamam de inconsciente. Como não se interessar pelos sonhos? Passamos um terço das nossas vidas caminhando pelo suposto reino do sonhar! Enigma, puro enigma. Os anos passaram, tudo à minha volta mudava como nos filmes frenéticos, aqueles com edição digna de MTV. Será que alguém sabe realmente o quão doloroso é ver o mundo que te cerca passar intocável e rápido como um raio? Estátuas ficam nas igrejas e cemitérios, onde o tempo é suspenso. Odeio igrejas e cemitérios. Lembro bem da antiga biblioteca da cidade, cheirava à acetona, talvez em função da bibliotecária que passava o dia fazendo as unhas. Lá encontrei livros antigos e me vi fascinado pelo que encontrava nas páginas coladas pela falta de uso. Li sobre Morfeu, o deus dos sonhos que na mitologia grega era filho de Hypnos, deus do sono. Morfeu aparecia na obra de Ovídio chamada Metamorfose. Li toda ela em dois dias. Li sobre Bés, o deus egípcio protetor dos sonhos e sobre Iurupari, o deus dos sonhos do Amazonas. Li por anos a fio todos aqueles livros, nerd em altíssimo grau com todo orgulho (a quem quero enganar?). Absorvia tudo o que conseguia e logo que terminava um livro pegava outro sem me importar com as mãos doloridas e a ardência nos olhos. Com o passar do tempo fui percebendo no que lia uma estranha conexão, todas essas lendas antigas pareciam de alguma forma se encontrar em algum ponto; percebi que o inconsciente coletivo era lindo, era real, escondia verdades. Existia mesmo nessa imensa teia um caminho que me levaria a algum lugar e a velha no hospital, a forma como disse, o jeito que seus olhos brilhavam... o que vi nos olhos da velha... Adormeci, mas estava mais desperto do que nunca. Colocaria o plano em prática e precisava estar consciente, sabia disso. Senti a grama sob meus pés, era etérea, macia e verdejante de um jeito imaterial. Ouvi os pássaros e seu canto me pareceu doce e mágico. O céu era roxo, escuro e estrelado e notei que montanhas altas e rochosas me cercavam formando uma espécie de gaiola de proporções assustadoras. Foi então que vi a trilha estendida bem diante dos meus pés, um caminho estreito feito de pedras que me pareceu tão simpático e convidativo que veio à memória os tijolos amarelos da trilha de Oz. Segui o caminho de pedras e me surpreendi ao ver que ele conduzia à única abertura entre a imensa prisão escarpada. A pequena abertura me levou a um túnel escuro, e por horas que me pareceram dias ouvi apenas o gotejar úmido e minha própria respiração. Vi um brilho fraco bem adiante e agradeci aos céus por não estar em uma caverna literalmente interminável. Saí por uma abertura circular e me deparei com a maior das visões que eu poderia algum dia conceber. Era um palácio, ou semelhante a um palácio, já que era mais suntuoso que todos os palácios terrenos já construídos e soterrados pelo tempo. Dezenas de torres afiadas e ameaçadoras, centenas de janelas angulosas e brilhantes; formas abstratas se harmonizavam com as formas concretas e seria impossível descrever a beleza e imponência daquele lugar perfeito e estranho. Andei pelo caminho tortuoso de pedras escuras passando por árvores grandes e retorcidas, exalavam atemporalidade em suas cascas duras. Os portões altíssimos e espelhados da construção estavam abertos e senti que poderia entrar sem que fosse visto como uma ameaça. Ouvi meus passos ecoando pelos altos corredores e cheguei sem saber como à sala do trono. Eu o veria! Morfeu, Bés, Iurupari, Sonho! Tudo seria diferente e eu sentia isso. Faria um apelo, não precisaria voltar. Minha escolha, se eu tivesse uma, seria permanecer em seu reino, onde tudo parece belo e novo, onde o mistério brota a cada instante como botões de flor e mostra como a realidade é crua e sem propósito. Ele simpatizaria com a minha causa, ficaria orgulhoso pelas minhas descobertas, pelas certezas que carreguei por tanto tempo. O trono escuro revelou sua figura e nenhuma palavra conseguiria fazer jus ao que eu vi. Olhos negros tão intensos! Era simplesmente impossível tamanha escuridão! E o brilho ofuscante, como descrever aquilo? Se é mesmo possível que a morte de uma estrela possa provocar o nascimento de outras, seus olhos deviam estar cheios de estrelas mortas. Fui me aproximando lentamente do trono, reparando em cada detalhe de sua figura, sua palidez imaculada, seu olhar soturno e suas vestes negras como a noite. Ia tocá-lo quando acordei de repente. Madrugada. Silêncio. Demorei a entender, mas entendi. Ele não permitiria. É consciente demais do seu trabalho, da sua responsabilidade e importância, sejam elas quais forem. Caminharemos todos em seu reino, mas não deixaremos os nossos lares. Há alguma verdade nisso, há algum mistério que ele jamais dirá, e terei que me conformar com isso. Seu reino será sempre o refúgio, jamais a morada. Abri em meio às lágrimas secas uma revista qualquer, dessas sobre avanços científicos e li em alguma página que todos nós, feitos de carbono, oxigênio e outros tantos elementos químicos somos poeira de estrelas mortas. Olhei para o céu lá fora e o céu estava todo estrelado.