quinta-feira, 21 de maio de 2009

(7 Perpétuos & 7 Contos de Ilusão - Parte VI)


E Morte deu o ar de sua graça, em uma matinê...

A noite parecia veludo azul-marinho e as estrelas estavam acesas como chamas tremulantes. Senti um arrepio estranho. Não costumo sentir arrepios. A rua estava toda molhada, cheia de carros barulhentos, derrapando, buzinando. Pedestres passavam apressados por mim; pessoas desprovidas de cores, rostos, metidas em grandes casacos ou sobretudos escuros. As árvores balançavam agitadas e as folhas se estendiam por entre as rachaduras da calçada como um tapete ondulado e vivo. Enxuguei minhas lágrimas. Não queria que ninguém me visse chorando. Não que eu conhecesse alguém dessa cidade, mas... não queria que me vissem chorando, o pobre estranho encharcado até os ossos. Quase fui atropelado por um carro. Não faz mal, pensei. Decidi entrar no cinema, não sei por quê. Vi as luzes, vi os cartazes, vi minhas lágrimas escorrendo no reflexo da vidraça. Engoli seco, adentrei o saguão deserto e estava feito, nada me faria voltar.
- Uma, por favor...
- Qual filme, senhor?
- Qualquer um.
A garota da bilheteria sorriu.
- Não posso escolher pelo senhor.
- Escolha, por favor. Confio em você.
Ela sorriu novamente, dessa vez corando de leve com aquele sorriso diferente, atencioso. Talvez tenha notado minha bela aparência, meus olhos cinzentos e empoçados. Mulheres gostam de homens que choram.
- Como pode confiar em mim? Nem me conhece – ela disse com uma malícia doce nas palavras.
- Por isso... não confio em quem eu conheço. Em você talvez eu possa.
Entregou a mim o bilhete, entreguei a ela o dinheiro e devolvi um rápido sorriso, ou o mais próximo de um sorriso que eu consegui forçar. Segui pelo corredor escuro, o vermelho das paredes me aqueceu. Entrei na velha sala de exibição, certamente um antigo teatro, há muito desativado. O palco ainda estava lá intacto, a tela protegida pelas cortinas aveludadas e puídas. As poltronas vermelhas me convidaram com gracejo, aceitei o convite. O lustre antigo despertou encanto, me perdi em seus detalhes. O tempo se arrastou dolorosamente. É impressionante como o tempo é relativo e cruel. E chorei, sem conseguir controlar, sem conseguir conter a imensidão da tristeza presa na minha casca. Molhei meu rosto de sal enquanto o velho projetor era magicamente acionado. Escutei a película rodando, aquele som me deixava mais calmo. As cortinas foram abertas e vi de forma embaçada a mágica sendo feita bem diante dos meus olhos. O filme era antigo, preto, branco. Cinza. Jazz repentinamente nos ouvidos e não demorei a entender o Paris Blues do título. Paris Vive à Noite... Tradução engraçadinha. Surgiu um pub. Paris, bela cidade das luzes. Paul Newman como um jazzista, obviamente apaixonado pela vida boêmia. Quem não seria? O sal misturou-se à água da chuva na minha camisa. Por que viver machuca tanto? Sempre tive a impressão de que esse mundo parece ser feito de pequenos acidentes e só a beleza do nascer do sol ou da alma preenchida pelo amor incondicional parecem estar acima de tudo, o resto não se sustenta. E quando o brilho do sol escapa, e quando a alma parece vazia, o que resta? Enxuguei o sal e olhei distraidamente em direção ao corredor da sala. Observei uma silhueta recortada contra o fundo vermelho. Uma garota... Apressou os passos, como se estivesse atrasada para algum compromisso. Impressionado com sua palidez notei os revoltos cabelos da cor do azeviche, os olhos negros grandes e radiantes, a boca pequena e carnuda pintada de negro como os olhos. Vestia uma saia leve e rodada como as das bailarinas, só que era desfiada e negra como a blusa. O amuleto prateado em seu pescoço cintilou – me pareceu um daqueles símbolos egípcios, qual seria? – e voltei meu olhar em direção à tela. Ela parou, ficou imóvel por alguns segundos e por fim sentou na poltrona ao lado.
- Começou faz muito tempo?
- Não – eu disse, tentando esconder as lágrimas.
- Ótimo! Os filmes anteriores atrasaram. Esse é problema das matinês... Ninguém merece esse efeito dominó...
Minutos pareceram horas sem fim e senti a estranha inquietude de quem é afetado por algo inesperado e surreal. Ela me olhava admirada, olhava a tela, escutava o som, percebia o sal das minhas lágrimas escondidas, parecia fazer tudo ao mesmo tempo, tudo embalado no mesmo ritmo doce e caloroso. Impossível...
- Por que você tá chorando? – perguntou em algum momento.
- Não sei.
Por que queria lhe contar tudo, revelar meus segredos mais soterrados, mais dolorosos? Por que queria lhe abrir minha alma em desespero? Não faço idéia. Existem coisas que sequer consigo compreender.
- Você sofreu, por muito tempo.
- Por que diz isso?
- VOCÊ diz isso, de algum jeito; não pelo olhar, não precisa esconder seus olhos de mim. Muita gente procura a verdade nos olhos.
- É, pode apostar.
- Eu não.
Observou meu rosto com seus olhos negros e senti pura intensidade.
- Já tomou sorvete de carne moída? Dizem que existe uma sorveteria de mil sabores na Tailândia que serve sorvete de lula, camarão, frango e carne moída...
- Você é biruta.
- Meu irmão mais velho sempre diz isso. Mas eu sempre digo que loucura é usar o mesmo capuz ao longo de tantos milênios! Tudo bem que ele não é chegado em vida social, mas... putz! Ninguém merece suportar uma criatura tão alienada no que diz respeito à moda antropomórfica! E o pior é aquele cheiro de mofo nas reuniões de família, é a gente que aguenta...
Ela notou meu espanto. Sorriu.
- Veja só como sou boba, falando de coisas que você não pode ainda compreender, talvez nunca compreenda.
- Você é muito estranha... e... me passa uma sensação que é estranha também... e eu acho que nem consigo definir o que você me faz sentir.
- Definir não é tão importante, sabe... talvez seja sentir mesmo. Quando alguém sente, expõe um pedaço terno e obscuro da alma, estilhaços de verdade que só existem na palma da sua mão. Simples e caótico assim. É como se só o sentimento verdadeiro aparecesse em meio a esse fluxo, e pronto! Como se todo o resto não tivesse tanta importância, como se fossem sombras projetadas em cantos vazios. Ah! Já viu Cantando na Chuva? É lindo aquele filme, só não é melhor que Mary Poppins! E você falando de sentir, e tudo mais, eu me lembro desse filme na hora! Sabe o que achei mais brilhante? Aquela cena em que o Gene Kelly leva a Debbie Reynolds naquele galpão e meio que cria um pôr-do-sol pra ela com luzes e ventiladores e tudo o mais. “Aquilo é tão falso!”, é o que todo mundo pensa. Pô, sem noção criar um pôr-do-sol tão artificial pra dizer “eu te amo”, né! Mas aí você vê o Gene cantando You Were Meant For Me pra Debbie e é só amor porque o que eles sentem é real, a sintonia ultrapassa a mise en scène e toda aquela parafernália fica pequena diante do que eles tão sentindo, entende?
- Mais ou menos.
- Puxa, fui tão filosófica assim?
- Não. É só que... não vi esse filme.
- Hum. Entendo. Bom, não faz muita diferença. Só queria que você se sentisse bem.
- Você me deixa bem.
- É, muita gente diz isso, mas não me canso de ouvir.
Atirou um sorriso zombeteiro e ofereceu sua mão delicada, pálida e fria e senti nela um calor que não deveria estar ali. Ficamos assim, de mãos dadas e sorrisos estampados até o projetor declarar o encerramento, o fim da grande mágica.
- Chegou a hora – ela disse.
Pura doçura...
- Gostei de assistir Paris Blues com você. Foi a melhor sessão do dia, sabia?
Foi então que ela se pôs de pé e me guiou gentilmente em direção ao corredor vermelho. Olhei para trás, vi meu corpo estirado na velha poltrona de camurça, parecia pesar sobre ele a dor e o simples fardo da vida que agora inexistia ali. Saímos do cinema e notei que ainda chovia. Chorei e não me importei. Não pelo fato de as pessoas não conseguirem me ver, mas porque estava com ela, acabávamos de sair do cinema e o céu nunca havia me parecido tão alaranjado.